Clarice Lispector e "A paixão segundo GH"
4 de setembro de 2012 by Natassia in Assuntos: , , , , , , , ,



Clarice Lispector é caso único na literatura brasileira. Nascida em 1920, em Tchetchelnik, Ucrânia, e falecida em 1977, no Rio, é o exemplo maior do chamado romance existencial ou introspectivo. A sua bibliografia, acompanhada cronologicamente, prepara pouco a pouco o leitor para o tumultuoso romance que publicaria em 1964. 

Seu primeiro livro, Perto do Coração Selvagem, escrito em 1943, foi recusado pela editora José Olympio, mas acabou sendo publicado no ano seguinte pela A Noite. O crítico Álvaro Lins considerou a obra "dentro do espírito e da técnica de Joyce e Virginia Woolf". O reconhecimento literário se efetivou com A Maçã no Escuro (1961). Outros romances ainda teriam boa receptividade, como Uma Aprendizagem ou o Livro dos Prazeres (1969) e o célebre A Hora da Estrela (1977), cuja protagonista, a nordestina Macabéa, se tornaria personagem antológica. 

Em A Paixão Segundo G.H., o enredo trata de uma mulher, identificada apenas pelas iniciais G.H., que - depois de demitir a empregada e tentar limpar o quarto desta - relata a perda da individualidade após ter esmagado uma barata na porta de um guarda-roupa. 
No dia seguinte, ela narra a própria impotência de descrever o episódio. A história se organiza em capítulos de seqüência sistemática - cada um começa com a mesma frase que serve de fechamento ao anterior. A interrupção, assim, é elemento de continuidade, numa representação simbólica do que é a experiência de G.H. 

Assim como em outras obras de Clarice, em A Paixão Segundo G.H. os fluxos de consciência permeiam o livro. Espécie de romance-enigma, fornece o lugar de sujeito à linguagem, que constrói ao redor de si um labirinto cuja saída está na essência do ser: trata-se de um longo monólogo em primeira pessoa, que se dá pelo que a professora Emília Amaral, autora de um estudo sobre o livro, chamou de "jorro turbilhante e ininterrupto de linguagem". Um paradoxo, como muitos dos que permeiam a obra da escritora: as palavras são, ao mesmo tempo, o que afasta o ser de sua essência, mas, ao mesmo tempo, constitui a chave para atingi-la. Segundo a professora da USP Nádia Gotlib, "é o exercício de linguagem como instrumento possível de se tocar no ponto que não é tocável, de se atingir o segredo: desenterrar o pior e o melhor de nossa condição humana, que já não é nem mais humana". Assim, a literatura de Clarice assume uma estatura filosófica, aproximando-se, na visão de alguns, do existencialismo de Jean-Paul Sartre. Diz a epígrafe da obra, de Bernard Berenson: "Uma vida plena pode ser aquela que alcance uma identificação tão completa com o não-eu que não haja nenhum eu para morrer". 

Sem nome, G.H. identifica-se com todos os seres. Sua experiência, para o professor Benedito Nunes, é multívoca. Entre suas vias possíveis está a mística, aberta a múltiplos temas, como a linguagem e a arte, que se fundem na busca espiritual. 
O momento maior de revelação se dá na cena mais famosa do romance. A barata, após perder sua casca, expele a secreção branca que aparece como sua última essência. G.H., então, a come. Estaria aí a renúncia que a personagem faz a seu próprio ser como linguagem, que, logo após o ato, entrega-se ao silêncio. 

Trechos do livro: 

"De nascer até morrer é o que eu me chamo de humana, e nunca propriamente morrerei. Mas esta não é a eternidade, é a danação. Como é luxuoso este silêncio. É acumulado de séculos. É um silêncio de barata que olha." 

"Pois o que realmente eu soube é que chegara o momento não só de ter entendido que eu não devia mais transcender, mas chegara o instante de realmente não transcender mais. E de ter já o que anteriormente eu pensava que devia ser para amanhã." 

"A desistência é uma revelação. Desisto, e terei sido a pessoa humana - e só no pior da minha condição que esta é assumida como meu destino." 

"Enquanto escrever e falar vou ter que fingir que alguém está segurando a minha mão. Oh, pelo menos no começo, só no começo. Logo que puder dispensá-la irei sozinha. Por enquanto preciso segurar esta tua mão - mesmo que não consiga inventar teu rosto e teus olhos e tua boca." 

"Um passo antes do clímax, um passo antes da revolução, um passo antes do que se chama amor. Um passo antes de minha vida - que, por uma espécie de forte ímã ao contrário, eu não transformava em vida; e também por uma vontade de ordem. Há um mau-gosto na desordem de viver." 

"Quem vive totalmente está vivendo para os outros, quem vive a própria largueza está fazendo uma dádiva, mesmo que sua vida se passe dentro da incomunicabilidade de uma cela."

Fonte: Educar para crescer